quinta-feira, 10 de abril de 2008

Carta

Ontem recebi uma carta de Clarice Lispector. Não, isso não é viagem minha. Não era uma carta dirigida á minha pessoa, claro. Um colega jornalista e blogueiro, que teve a magnífica sorte de entrevistar a "deusa dos mitos e enígmas" por duas vezes, sabendo da minha profunda admiração por ela, me presenteou com um documento que dizem ser exclusivo. Eu, que já li dezenas de cartas escritas por ela, algumas escritas a próprio punho, expostas no Museu da Língua Portuguesa, e outras muitas no livro Correspondências, que reúne as cartas que Clarice escreveu quando morava no exterior e que ganhei de aniversário da minha querida amiga Danila, achei que a carta se assemelha mesmo ao estilo clariceano e não poderia atribuir sua escrita a outra pessoa, a não ser Clarice.
O mais curioso é que ontem eu não me sentia nada bem. Estava envolta a uma melancolia totalmente efusiva, mas quando li aquela carta, da qual não se conhece o remetente, parecia mesmo que Clarice havia escrito para mim.
Não havia nem pensado em postar isso aqui, pois não é novidade eu me identificar com tudo que ela escreve, mas é que vindo de Clarice, para mim, nada nunca é demais.


Berna, 2 de janeiro de 1947

Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma.


Tua Clarice.




Obrigada Bill.

28 comentários:

@eddiepomini disse...

Vc não imagina o quanto me tocou.
Estou péssimo agora.
As palavras dela me soaram como uma música que entrou suave e depois me rasgou inteiro de fora-a-fora.
É isso que vc faz com as pessoas?
Vc tenta melhorar as deixando mal!
Então só posso te dizer uma coisa:
Obrigado, até começou a chover.
Não deixe de publica-las sempre, por favor.
Ou senão me empresta o livro!

Um beijo.

Nathália E. disse...

Eu já li trechos dessa carta num site que publica alguns fragmentos de pensamentos de grandes personalidades e tal. Se lembrar o endereço te digo.

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro."
Nunca vou esquecer o que senti na 1ª vez que li esse trecho, e que ainda sinto, pra ser sincera.

Beijo!

Heduardo Kiesse disse...

breve fenómeno, aqui :-)

beijinhos mil

Cris Medeiros disse...

Um texto e tanto! Clarice é maravilhosa e dá para percebê-la claramente, aquela inquietude feminina! Amei!

Beijos

Forest disse...

Nossa. Que carta!
abraço

Mariana disse...

As palavras provocam reações impressionantes. Arrepiei e sorri qndo lia...

Gostei!


eu nunca fui uma mega leitora de personalidades e nunca me lembro de trechos, mas lendo seu blog e o da Nathália eu estou conhecendo melhor Clarice e estou adorando!

Beijos!

Cin disse...

Essa carte dela é realmente tocante, eu também a publiquei no blog qdo li pela 1° vez

Bjinhos!

Biel, o Bardo disse...

sim... tenho uma queda por cartas tb. escrevi varias... mandei poucas... recebei quase nenhuma.
agora me responde: esse estado de melancolia não funcional é com todo mundo entao? novamente o tal spleen sobre nós? ai ai ai...

outro pra vc!!

Biel, o Bardo disse...

ai ai ai! quer dizer que agora vai ficar me desvendando por aí?! tsc tsc tsc! hehehehehe...
benzinho, eu faço coisas naquele meu blog que até duvido! mas ainda bem que tenho pessoas que percebem e me falam!
Mas a história do violino foi basicamente aquilo. Eu indo pro rio tendo como garantia da volta, vender meu violino. hehehe... umas das minhas várias loucuras! Logo colocarei mais...

outro!

Biel, o Bardo disse...

ah!!! pelo amor de deus!!
to falando...
nao estava lendo spleen e charutos, mas li sobre charutos e me interessei em coloca-los com spleen!
façamos a reunião logo!
eu ouvi hoje à noite? sim?

outro!

Biel, o Bardo disse...

pode até ser na praça, mas haja reunião!!

Amanda Oliveira disse...

"Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro" Eu sempre gostei desta parte!

Wev's disse...

Uma carta pode mudar toda uma vida
Eu espero uma carta...

Anônimo disse...

olá!

"não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma"

UUUUauuu!!

BEIJOS

Breno C. disse...

Não sou muito fã da Clarice Lispector e nem de cartas, mas...
Também passo por certas "melancolias efusivas" e ler algo também me ajuda, pode até se comprar a uma forma de alcolismo, só que não se bebe o licor e sim as palavras, quando se vê já era a melancolia....

Junkie Careta disse...

Incrível, você se espantaria com a comoção que me causou a ler essa carta... talvez o meomento. A primeira vez que a li eu tinha a sua idade. Sinceramente, clarice tem essa capacidade de nos fazer confundir a sua vida pessoal com sua arte, e até desconfiar que ambos são a mesma coisa. Não sei se gosto mais do que ele fez de literatura ou de cartas. Sobre essa,gosto especialmente da compreensão de vida em:

"Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige".

Às vezes, leva-se uma vida inteira pra entender isso, aí chega ela assim, e nos dá isso de presente. Os deuses são bondosos com os mortais.

Quanto à sua interpretação do meu texto, sua capacidade de abstração do subtexto é assustadoramente sensível.
Parabéns e saiba que, graças a você, voltei a ler Clarice todos os dias, eu que só tinha tido uma recaída esse ano.

Grande abraço

Lígia disse...

Oi, vi seu blog no da Nathalia e vim lhe visitar e quando abre a pagina dou de cara com uma carta de Clarisse, pra você? E pra mim tbém, devo lhe confessar... rs

Já tinha lido um trechinho dela, mas não a carta inteira.. Adorei! Obrigada, por nos presentear com uma carta de Clarisse!

No meu orkut tenho uma entrevista dela na tv cultura, se vc não tiver visto me diga, que eu te passo o endereço..

Bjs

Lígia disse...

Te linkei! :))))

Assim fica mais facil voltar a visita-la.

@eddiepomini disse...

"Que a vida é mesmo
Coisa muito frágil
Uma bobagem
Uma irrelevância
Diante da eternidade
Do amor de quem se ama"

Foi o melhor show que eu já fui até hoje na minha vida!!!
Me lembro de estar barbudo, com um all-star velho, uma camiseta preta e uma bermuda jeans rasgada.
1:45 incansaveis.
Pra mim e pra ele.

Quando Ele voltar a gente vai.

Pra vc também.

su ellen. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
su ellen. disse...

Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.

- diz que "o mostra pra Suellen" você apagou ;P

te linkei [2] =D

beeijo =*

su ellen. disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Tatiani disse...

Ador Clarice L. E sua Macabéa! Sem falar em todo o resto... em toda a sua sencibilidade!

*linda carta

Janete Andrade disse...

'Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.', lembro de ter me abandonado certa vez desse modo, a gente fica mesmo um trapo!
um trapo emocionalmente...

O Profeta disse...

Tem um particular encanto o teu espaço...


Beijinho

Nise disse...

conheço pouco o trabalho dela, e o pouco que conheço sei porque ela s é simplesmente Clarice.

Fabrícia Meira disse...

Clarice Lispector !


só ela me entende ;)
achei teu blogger , zambando poor aê ;)
ADOREI haha.
posso te linkar ?
;)
sempre vou ta por aqui , lendo vio?
;***

Alessandra Castro disse...

Ahhh q belo belo texto, realmente bem reflexivo, as vezes as coisas simplesmente parecem q se encaixam, destino isso talvez. Espero q tenha ajudado mesmo vc. =*