segunda-feira, 14 de abril de 2008

Uma amizade sincera.

"Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas no último ano da escola. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora. Há tanto tempo precisávamos de uma amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.
Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossas mútuas namoradas também estava fora de cogitação, pois um homem não falava de seu amores. Experimentávamos ficar calados - mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.
Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.
Foi quando, tendo minha família se mudado para São Paulo, e ele morando sozinho, pois sua família era do Piauí, foi quando o convidei a morar em nosso apartamento, que ficara sob a minha guarda. Que rebuliço de alma. Radiantes, arrumávamos nossos livros e discos, preparávamos um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto - eis-nos dentro de casa, de braços abanando, mudos, cheios apenas de amizade.
Queríamos tanto salvar o outro. Amizade é matéria de salvação.
Mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.
Tentamos organizar algumas farras no apartamento, mas não só os vizinhos reclamaram como não adiantou.
Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo as longas férias.
Data dessas férias o começo da verdadeira aflição.
Ele, a quem eu nada podia dar senão minha sinceridade, ele passou a ser uma acusação de minha pobreza. Além do mais, a solidão de um ao lado do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando estávamos sozinhos. E, mais que maior, incômoda. Não havia paz. Indo depois cada um para seu quarto, com alívio nem nos olhávamos.
É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando meu amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura. Não é que fosse grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andei entusiasmado pelos escritórios de conhecidos de minha família, arranjando pistolões para meu amigo. E quando começou a fase de selar papéis, corri por toda a cidade - posso dizer em consciência que não houve firma que se reconhecesse sem ser através de minha mão.
Nessa época encontrávamo-nos de noite em casa, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho. Foi, aliás, nesse período que, com algum sacrifício, dei um pequeno broche de ouro àquela que é hoje minha mulher. Só muito depois eu ia compreender que estar também é dar.
Encerrada a questão com a Prefeitura - seja dito de passagem, com vitória nossa - continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.
Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.
A pretexto de férias com minha família, separamo-nos. Aliás ele também ia ao Piauí. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros."

Clarice Lispector in Felicidade Clandestina - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

13 comentários:

Jade disse...

Como é difícil apenas ser amigo...
Beijos!!

Anônimo disse...

uma amizade só existe na verdade

o verdadeiro sabor está nos cheiros que se tocam entre olhares sentidos

A SEIVA

Assim que sou disse...

Já tive tantos amigos a quem amei intensamente e que foram, durante um bom período da minha vida, presença indispensável. Mas somos tantas pessoas através da vida que nem sempre a harmonia que une se cristaliza a ponto de sobreviver à travessia desse deserto de transformações. Mas a história sempre permanece, especialmente quando a contamos em letras e emoção.

bjs. Veronica

Cris Medeiros disse...

Amigos, jóias raras, quando encontramos devemos guardá-los na alma, nunca aprisioná-los ao nosso lado, é desnecessários.

Beijos

Wev's disse...

Por um momento achei que era sua historia.

Janete Andrade disse...

'Amizade é matéria de salvação.'
já tive muitos amigos, alguns a vida afastou de mim, outros afastaram-se por desentendimentos, e outros ainda afastarem-se por opção.
confesso que sinto saudades de todos, embora também ache que aqueles que não se fazem mais presentes não eram amigos de verdade, enfim sinto saudade, só... =/

bjO

Nathália E. disse...

Me sinto absurdamente feliz por saber que tenho amigos sinceros. Não são muitos, não mesmo, mas me são suficientes.

Beijo!

Lígia disse...

Eu tenho alguns amigos, os quais desejo mais felicidade do que seria capaz de desejar a mim mesma..
Achei que a historia fosse sua e qndo chego ao fim, a granade surpresa. Adoro Clarisse!

Bjs

@eddiepomini disse...

Porque sinceridade assim como postura é tudo na vida!

Pra vc também.

Eddie= curto, breve e de alma lavada!

Bill Falcão disse...

Ana Laurinha, estive acertando umas contas com a realidade por aqui e fiquei uns dias sem aterrisar por sua página Clarice/Ana.
Já coloquei minha leitura em dia. Então, a carta de Clarice te deixou melhor do que eu pensava? E seus leitores também gostaram, pelo que vi nos comments hehe!!
Te linkei lá na redação. Se a gente não linka, acaba esquecendo de visitar alguns blogs amigos, aprendi isso ao longo de meu primeiro ano como blogueiro. Lembre disso, e seremos felizes para sempre hehehe!!!
Quando li este post aqui, e o outro, com a carta que te enviei, lamentei não ter tirado fotos naquele segundo dia, na casa de Clarice, no Leme. A História estava ali, na minha frente, mas eu só percebi que fiz parte dela muitos anos depois, quando uma falecida e querida amiga, do Leblon, ficava lendo trechos de Clarice pra mim! O que me lembra outra História (observe o H maiúsculo também!), da qual participei sem saber que viraria História... Só que esse comment aqui tá ficando grande demais e eu conto outro dia. Se eu esquecer, pode me cobrar, OK? E lembra do link, a melhor memória de um blogueiro, depois do coração!Bjooo!

Júnior Creed disse...

Ter a honra de ler Clarice pela manhã é como me banhar num mar cujas ondas servem para uma espécie de batismo: vc se molha e não sai igual da água. assim é ler Clarice, quem lê se torna outra pessoa ou passa a enxergar o tudo de uma maneira bem diferente. ah, ganhei o livro Cartas perto do coração de presente de níver, coisa da minha mãe. beijos!!!!

Júnior Creed (vale da solidão)

Lucas disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lucas disse...

Oie!, passo pra agradecer as infinitas visitas no blog da Clarice, e claro, pelas dicas e correções que deixa por lá. Como muitos textos são puxandos da net, alguns chegam com erros, trechos faltando, e essas coisas.

Enfim, bom poder contar com você.

Fora isso, gostei mui daqui.
Vou voltar.

Bjo,
Lucas.